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Fé em Santo Antônio e no autoconhecimento

13 de junho é Dia de Santo Antônio. E eu sempre fico pensando como as pessoas têm coragem de colocar um santo fofo daquele de ponta cabeça ou na geladeira no intuito de conseguir um amor. Sei que é só uma imagem, mas eu não conseguiria não. Tadinho… logo ele, tão acolhedor, segurando o menino Jesus no colo.

Além do que, acho meio “anti-ético” começar uma relação de parceria com um santo dessa forma. Dizer “fica aí até me arrumar um namorado(a)” está mais pra uma ameaça e chantagem do que para um pedido. É amor ou um escravo(a) que você quer? Pensa bem.

Não sou contra rezar pra ajudar na busca dos nossos objetivos. Muito pelo contrário, acredito piamente no poder da oração. Mas acho que as pessoas às vezes não querem ajuda, elas querem um milagre. E quando eu falo milagre, eu quero dizer receber magica e passivamente, sem ter que fazer nada por isso, entende?

Veja bem. Se a pessoa conscientemente quer muito estar num relacionamento e não encontra ou não se firma com ninguém, alguma coisa dentro dela está em desacordo. Tem um lado dela que quer e um outro que, com certeza, não está tão a fim assim! Ainda mais quando o assunto é relacionamento afetivo, que pode nos trazer muitos momentos bons, mas que também nos deixam super vulneráveis. Nos obriga a olhar pra questões que nem sempre estamos dispostos.

Consciente x inconsciente

Já somos maduros suficientes – ou deveríamos ser – pra compreender que apenas uns 10% das nossas ações são conscientes. Os outros 90% são comandadas por nosso inconsciente. E isso não sou eu que to inventando, é pura psicologia. Ou seja, se existe uma incoerência muito grande entre o que quero conscientemente e o que tá rolando de verdade na minha vida, tem alguma treta rolando ai dentro de você. Há material de estudo pra ser investigado!

O autoconhecimento, pra mim, é um trabalho que só começa quando existe um mínimo de humildade. Você procura por ele depois que duvida de si mesmo e entende que talvez não se conheça tão bem quanto achava. Antes disso, a gente fica puto com a vida, com o mundo e faz coisas tipo colocar Santo Antonio na geladeira.

Outra coisa que acho muito triste. Gente que fala “fulana tem DEDO PODRE, só arruma boy lixo” ou “fulano NÃO DÁ SORTE com mulher”. Não é o dedo que tá pobre, minha gente, é você que não está fazendo terapia ou não está buscando se conhecer! Simples assim. Também não acredito em falta de sorte. Garanto que se esse pessoal “azarado” compreender as mágoas que guarda do pai e da mãe e as dores que ficou da infância vão começar a encontrar pessoas melhores no caminho. Isso sim é um verdadeiro milagre. Mas tem que contar com a sua ajuda, entende? Não dá pra exigir que o santo faça tudo sozinho.

Me lembro bem quando, há uns anos atrás, durante um retiro de Leitura de Aura, cujo tema era relacionamento, nós meditamos para visualizar uma imagem que traduzisse como nós estávamos agindo (inconscientemente) nas nossas relações. E a imagem que veio pra mim me deixou muito perturbada. A cena era eu num lugar que parecia um campo de batalha da Idade Média. E eu era uma brava guerreira que levantava o escudo e a espada sempre que alguém se aproximava. Eu bufava de raiva e estava doida para cortar cabeças. Basicamente, a mensagem era que eu não me relacionava, mas sim, guerriava com as pessoas. Eu estava sempre super armada e me protegendo previamente de possíveis ataques de qualquer um que se aproximasse.

Fiquei muito mexida com a imagem e com essa constatação. Eu me achava tão fofa, simpática, acolhedora. Mas de fato, não entendia porque não só os homens, mas todas as pessoas parecia ficar meio distantes de mim. Sentia sempre que tinha contatos meio superficiais. E depois de ver isso, fui ligando os pontos e vendo como eu sempre me sentia “atacada” por algumas atitudes de pessoas próximas ou por comentários das pessoas que eu sempre encarava como críticas e me ofendia. Revidava ou me afastava. Era muito cansativo. Estar em guerra nos deixa sem energia.

Aos poucos fui entendendo melhor as razões disso e hoje sinto que estou muito melhor. Mas ainda é um super trabalho me manter relaxada e desarmada nos meus relacionamentos. Todos eles – com o marido principalmente, mas também com as amigas e até com minha família. Ainda ouço a voz dessa “guerreira” que me diz com frequência que “ele tá falando isso pra te atacar”. Ou “sua mãe tá te dando uma indireta, revide”. É complexo.

Fé + autoconhecimento = porta aberta para o “milagre”

Enfim, para finalizar, quando o assunto é relacionamento, o que recomendo é: reze, mas também, procure se conhecer. Busque terapias, com psicólogos, holísticas, em grupo, o que sentir que precisa. E se for rezar pra Santo Antônio, não faça chantagem. Seja coerente, proponha uma parceria.

Sugiro algo do tipo “Querido Santo Antônio”….

– Me ajude a comprender por que estou tão fechada para relacionamentos? Do que eu tenho medo? O que se enconde dentro de mim que não estou conseguindo ver? Me mostre.

– Me ajude a abrir meu coração! Me ajude a encontrar caminhos para a cura e para elaborar sentimentos que ainda não digeri.

– Me ajude a conhecer melhor a minha sexualidade e meus desejos. Por que só me interesso por quem não está a fim de mim?

E por aí vai…. seja honesto com você mesmo e peça de coração. E ajude esse santo tão querido a te ajudar.

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“Quando me descobri racista”

Conheci a Bianca em 2003 no primeiro dia de aula da faculdade. E em pouco tempo ficamos muito amigas. Era a única colega negra da sala. Talvez a única de todo o curso de jornalismo. Falávamos muito sobre Direitos Humanos, Política, História… e muitas bobagens também. Me lembro do dia em que ouvi ela falar que estava estudando algo sobre a escravidão e os impactos sofridos pelos negros nas aulas de Ciências Sociais, na USP. Ela achava um absurdo toda a herança de opressão deixada para os negros, grupo do qual visivelmente ela não se sentia parte.

Por diversas vezes me veio na garganta a pergunta: “escuta, como é pra você, como negra, estudar tudo isso? ”. Mas eu nunca consegui perguntar. Não sabia como ela lidava com a questão e tinha até medo que ela se ofendesse com a pergunta (!!).

Acelere o tempo para 2017.

Bianca me escreve para contar que estava num festival literário em Araxá (MG). Ela hoje é escritora, negra e ativista. Autora do livro “Quando me descobri negra”, que relata em crônicas um lindo, profundo e doloroso processo sobre como ela se descobriu e se apropriou de sua origem negra. Deixou de ser morena.

Desde então, sempre falamos muito sobre esse processo de se conectar com suas origens, de resgatar a dor e a força que toda essa história envolve e, principalmente, sobre ter a coragem de escrever sobre isso e inspirar tantas mulheres a fazer o seu caminho de empoderamento. É um processo complexo, cheio de camadas e de contradições. Mas muito potente também.

Sempre tive muito orgulho de ver não só a Bianca, mas tantas mulheres que, nos últimos anos, se assumiram negras. Soltaram seus cabelos e suas vozes. É realmente lindo de ver. Mas, de uns tempos pra cá, tenho olhado mais pra mim e entrado em contato com o meu próprio processo diante de toda essa transformação. E tenho lidado com algo bem complexo e profundo que é a deixar de ser racista.

Temos que ir além do discurso.  Photo by Henry Be on Unsplash

Discurso x prática

Comecei a perceber que conscientemente eu, claro, apoio todo esse movimento. Numa camada mais superficial, no raciocínio e no meu discurso, sou super a favor da valorização do negro. Mas por dentro tenho percebido muitas contradições. Começou de forma leve quando percebi que eu ia em vários debates com mulheres negras, discutia representatividade, mas quando entrava num restaurante e via mulheres negras no salão, eu continuava com a velha certeza de que elas eram faxineiras, garçonetes ou qualquer outro cargo que exige um menor grau de escolaridade. É uma conclusão assim que chega sem que dê tempo de pensar. É rápida, espontânea, sorrateira. No início, me iludi pensando “ah, mas é a cena que estou mais acostumada a ver, então, é natural que eu tire essa conclusão”. Mas não é só isso. É uma sensação que é difícil de perceber – e mais ainda de assumir – mas é uma certeza de quem no fundo, mas lá no fundo meeesmo, espera e quer que essas mulheres estejam ali daquela forma, entende? Num lugar que não é o mesmo onde eu, mulher-branca-cliente-privilegiada, estou.

Fiquei meio chocada em perceber isso. É difícil. A vergonha é enorme. A gente sempre quer ser mais legal do que se é. Mas como estou me enfiando num processo de auto-conhecimento profundo e compreendendo várias partes minhas bem pouco admiráveis, resolvi ter coragem e ir mais longe na minha auto-observação em relação ao racismo também.

A segunda grande contradição veio com aquela polêmica do uso do turbante, quando uma menina com câncer disse ter sido reprimida por mulheres negras por estar usando algo que é da cultura africana. Meu incômodo nem foi a questão de a menina poder ou não usá-lo – aliás isso só era importante pra quem não se aprofundou no debate. A minha dificuldade foi em aceitar que o turbante era de origem negra. Meu primeiro pensamento – aquele espontâneo, rápido, sorrateiro – me falou “uai, mas as mulheres egípcias já usavam turbantes…”.

Como já estava atenta a esse lado mulher-branca-racista que me habita, refleti e pesquisei o assunto. E quando cheguei num texto incrível da escritora Ana Maria Gonçalves, tomei tantos tapas na cara que fiquei até tonta. Ela fala entre outas coisas sobre essa característica do racismo de não acreditar que os negros possam ter criado coisas legais e incríveis. Aceitamos que o macarrão é italiano (mesmo que tenho sido inventado pelos chineses), que o judô é japonês, mas a capoeira é brasileira (tipo minha, sua, nossa, de todos…), o acarajé é da Bahia, do Brasil, o samba é nosso. O que os negros trouxeram nunca é do negro. E se eles disserem que foram eles que inventaram, a gente ainda questiona. A verdade é que nós, brancos, duvidamos deles o tempo inteiro!  Achamos que eles estão equivocados até quando falam da própria história. É muito arrogância. Resistimos muito em dar a eles glórias e créditos. Já frases como “só podia ser preto” ou “isso é coisa de preto” saem facilmente da boca (ou fica no pensamento) de muita gente quando vê alguém fazendo uma besteira.

No mesmo texto, ela cita um poema de Nei Lopes que diz o seguinte:

“Primeiro,

Eles usurparam a matemática

A medicina, a arquitetura

A filosofia, a religiosidade, a arte

Dizendo tê-los criado

À sua imagem e semelhança.

Depois,

Eles separaram faraós e pirâmides

Do contexto africano

Pois africanos não seriam capazes

De tanta inventiva e tanto avanço”

Nessa hora, eu vi como o racismo é esperto. Consegue deturpar até mesmo limites geográficos, tão claramente definidos nos mapas. Quando reclamei que o turbante vinha do Egito, onde eu enfiei esse país? Na Europa? Na Ásia? Porque no nosso imaginário (racista) a África é só o continente de crianças famintas da Somália e guerras civis. No máximo, a terra do povo que sempre ganha a São Silvestre – e de quem nem sabemos os nomes, aliás. Hollywood inventou que a Cleopatra era loira de olhos azuis como a Liz Taylor e nós acreditamos.

Quando vi o discurso da Taís Araújo dizendo que a cor do filho dela faz com que as pessoas mudem de calçada também ressoou forte em mim. Quando estou andando na rua sozinha e vejo homens se aproximando, eu às vezes fico com medo e tenho vontade de mudar de calçada. E se eu falar que não faz diferença se os homens são negros ou brancos, vou estar mentindo. Porque faz. Os homens negros geralmente me assustam mais. Tenho em minha memória um trauma real de um sequestro relâmpago que sofri e que foi praticado por dois jovens negros. Mas sei que junto com essa experiência concreta vem todo um esteriótipo do jovem-negro-bandido que é notícia todo dia na TV e que tá lá grudado no nosso inconsciente. Tenho noção do quanto é opressor e injusto para os jovens negros trabalhadores, e pras mães negras, quando olho para eles com medo ou quando disfarço e mudo de calçada. E tenho pensado muito em como lidar melhor com isso.

Enfim, esses são só alguns exemplos das contradições que percebo em mim. E falo isso não como quem está conformada e acha que a vida é assim mesmo. Pelo contrário, assumo esses pensamentos e sentimentos racistas porque acredito que só assim vou avançar e conseguir ser uma pessoa melhor. Porque acredito que essa causa é de todos. Mas não é um processo fácil. Requer muita coragem.

Racismo tem a ver com arrogância, que é um subproduto do orgulho. E reconhecer a própria maldade é a coisa que o ser humano mais resiste em fazer na vida.

A tendência é sempre achar que ou que ela não existe (é mimimi) ou que ela está no outro. Seja o outro a socialite criminosa que chama criança negra de macaca ou a amiga desavisada que faz perguntas tipo “cadê o dia da consciência branca?”. É importante perceber que o fato de me reconhecer como privilegiada e apoiar as cotas e a luta dos negros não me isenta de ser racista. Do mesmo jeito que os homens (e nós mulheres) feministas não estão livres do machismo. São muitas camadas para serem despidas. Mas sei que o primeiro passo para me livrar dessa sombra é assumir que ela existe, compreendê-la pra conseguir transformá-la.

E outra. Já passou da hora de nós, brancos, assumirmos o racismo que existe dentro de cada um de nós. Pra que essa luta não seja unilateral e nem fique só no nível do discurso. Sinto que é o melhor que podemos fazer pelos negros nesse momento. E já sinto grandes mudanças dentro de mim.

 

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Sobre animal totem e o espírito dos animais

Quando abri a gaveta do meu porta-joias, com pressa, o par de brincos de coruja praticamente saltou na frente dos meus olhos. Há tempos que não lembrava dele  e achei que tinha tudo a ver usá-lo naquele dia. Eu me arrumava para participar de um curso chamado “Jornada do Animal Totem” e levar um par de aves na orelha me pareceu uma ótima ideia.

Logo no início do curso, percebi que a proposta era muito mais profunda do que eu imaginava. Não era apenas para descobrir sobre o seu animal totem, mas sim sobre a importância de se conectar espiritualmente com todos os animais.

Angelina Ataíde – uma das pessoas mais incríveis que já conheci, aliás, fundadora de Piracanga – começou contando uma história/lenda muito interessante sobre os animais. Falou sobre uma era longínqua em que seres humanos eram pura luz e conviviam com os animais em perfeita harmonia. Algum tempo depois, essa harmonia se perdeu por vários motivos. Mas apesar de toda a crueldade que fazemos com os animais, eles continuam sempre prontos para ajudar na nossa evolução aqui neste planeta.

Segundo tradições ancestrais, todos nós contamos com a proteção espiritual de um animal. É como um anjo da guarda em forma de bicho, com o qual podemos nos comunicar, pedir força, e que tem características semelhantes com as que trazemos na nossa essência. São os animais totens.

Além deles, existem ainda os chamados “animais de poder”, que é quando um animal se aproxima para nos dar uma ajuda temporária e nos emprestam um pouco do seu poder quando precisamos. Não sabia que tinha esse nome, mas eu já tive conexões como essa com a minha gata preta, a Nádia.

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Os gatos – especialmente os pretos – são famosos por seu poder de transmutar energia, de fazer grandes limpezas no ambiente. Certa vez, durante um processo terapêutico, tive sonhos muito perturbadores, cheios de angústia, tensão e medo. Parecia um filme de terror. Acordei com uma forte dor de cabeça e muito enjoada. Fui pra sala, sentei no sofá, e Nadia veio direto para o meu colo, bem em cima do meu estômago. Minutos depois, se levantou e começou a tossir, tossir até que vomitou. E meu enjôo desapareceu. Até achei que podia ser coincidência, mas meses depois, novamente eu tive uma noite que mais pareceu uma guerra, em que eu, em sonhos, batalhava literalmente com alguns demônios internos. Acordei cansada, com o corpo  dolorido. E quando abri a porta do meu quarto, a Nádia tinha vomitado não uma, mas SETE vezes. Bem na porta do meu quarto. Ficou bem claro pra mim que não tinha trabalhado sozinha naquela noite.

Angelina explicou também que, diferentemente dos humanos, os animais tem como uma alma coletiva. Ou seja, existe um grande espírito das formigas, um grande espírito dos lobos, outro para os gatos, e por aí vai. Três espécies, porém, são de grande evolução espiritual e possuem almas individuais, como os humanos: elefantes, baleias e golfinhos. Sim, os golfinhos <3.

Foram muitas discussões e aprendizados incríveis. Mas na parte da tarde, chegou o momento mais esperado do curso: a meditação guiada que nos ajudaria a descobrir qual era o nosso animal totem. Deitada no colchonete, comecei a respirar fundo, fui relaxando e seguia as orientações que nos levou até uma grande árvore, onde embaixo de suas raízes, encontramos um vale incrível, onde viviam todos os tipos de animais.

Já fiz muitas meditações guiadas. E sempre me surpreendo com tudo o que é possível acessar através delas. É realmente um universo paralelo. Fisicamente, eu estada deitada, tranquilinha. Mas na minha visão interna, muitas coisas aconteciam.

Num lugar lindo cheio de árvores, lagos e plantas, eu estava sentada numa pedra. E alguns animais começaram a se aproximar. O primeiro foi um veado, que comia grama bem pertinho do meu pé. Depois um coelho chegou e comecei a ver o que ele fazia bem de perto, como se estivesse vendo através dos seus olhos. Ele andava ligeiro entre as plantas, cheirava tudo o que encontrava na frente, abrindo e fechando as narinas bem rapidinho. Com muita presença Eu sentia tudo! Era ótimo. Depois veio uma cobra eu segui com ela rastejando. O corpo era frio, mais duro. E o movimento que começava perto da cabeça, chegada aos poucos às outras partes de corpo. Era bom se esfregar se chão e sentir a terra na minha barriga.

Depois, foi a vez de nadar com um peixe. Que incrível! Nadava rápido e com uma fluidez deliciosa. Depois fui me afastando, até que voltei a ser eu mesma, sentada na pedra, naquele vale encantado. E muitos animais agora estavam bem próximos. E me olhavam como se dissessem “o que você quer saber? Pode perguntar”.

Olhei para o peixe e a pergunta que saiu de mim foi: você sente dor? Aos poucos, fui entrando novamente no corpo dele. Mas desta vez, foi uma experiência horrível. Vi/vivi um peixe recém-pescado, fora da água, fazendo um esforço hercúleo para respirar. E eu sentia tudo. Pareciam minhas aquelas guelras avermelhadas abrindo até o limite em busca de oxigênio. Não podia respirar. Foi desesperador. Comecei eu mesma a sufocar, deu tontura, angústia, vontade de chorar.  Na minha tela mental, tudo ficou preto. Até que finalmente, consegui me afastar e voltar para minha posição inicial, sentada na tal pedra. Que alívio.

O tempo da meditação já estava acabando, eu já tinha trocado ideia com metade do reino animal,  mas continuava sem saber quem era o meu totem. Finalmente consegui perguntar, mas os animais ficaram me olhando sem dizer nada. Voltando um pouco para a realidade, ouvi a voz da Angelina dizendo “não fiquem preocupados em saber quem é o seu animal. Apenas sintam e aproveitem”. E então eu relaxei. Fiquei só observando aquele lugar incrível que eu visitava  na meditação.

E de repente, a resposta começou a aparecer. Não da forma que eu imaginava. Achei que ele surgiria naquele vale e diria “olá, querida, sou eu seu animal totem”. Mas não. Simplesmente comecei a sentir uma presença diferente no meu corpo, como se um animal estivesse prestes a sair de dentro de mim. Era muito bom e assustador ao mesmo tempo. Senti meus olhos ficarem grandes, enormes. Muito vivos. Envolta deles, um contorno grande, parecia uma mistura de óculos com máscara. E senti que poderia enxergar bem. Muito bem. Mesmo no escuro. Nos meus braços, senti uma de leveza e uma amplitude de asas. Não tive mais dúvidas. Era ela: a coruja.

 

Autoconhecimento destaque Tarot

Sobre a vida e a morte

Carta da morte no tarô

Quando minha amiga/irmã contou que teria que fazer a exumação do corpo do seu pai, eu me prontifiquei a acompanhá-la. A morte dele foi dolorosa, difícil de digerir, e achei que seria importante estar por perto. Mesmo que a data do evento fosse no dia do  meu aniversário. Prioridades nunca seguem calendário, não é mesmo?

Chegamos ao cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, pouco antes das 10 da manhã e encontramos com um empreiteiro de cemitério, profissional especializado em construção e reforma de túmulos, – sim eles existem – e com um primo distante dela, cujos pais também estavam enterrados no mesmo local.

Os coveiros já haviam iniciado o processo de escavação. E a nós – eu e minha amiga – só restava esperar. Fazia um calor insuportável, perto de 35º C, bem acima da média do esperado para uma manhã de primavera. Ficamos proseando sentadas nos degraus de outro túmulo, onde tinha uma sombrinha.

Expectativa X Realidade

Nunca tinha participado de uma exumação. Mas na minha cabeça ingênua e criativa, eu já tinha imaginado várias cenas. O coveiro cavaria até achar o caixão e que, dentro dele, haveria um esqueleto inteiro, com todos os ossos certinhos – tipo aqueles dos livros de Ciências – vestido com o terno do funeral. Nesse momento, minha amiga cairia em prantos, de joelhos, e eu seguraria em suas mãos enquanto ela cobriria o rosto para não se chocar com os restos mortais do pai. Eu já estava até preparada para talvez adiar a comemoração do meu aniversário porque poderia sair de lá muito triste e sem clima pra festa.

Mas a realidade foi completamente diferente. Em muitos níveis e por vários motivos. Primeiro porque o caixão já nem existia mais. A madeira tinha sido toda comida pelos bichinhos e o pouco que deu pra ver foram algumas alças de metal, que resistiram ao tempo.

O esqueleto completo e o terno também eram pura ilusão. O que sobra do corpo, minha gente, depois de quase 20 anos, são alguns ossos isolados que se misturam com terra e pedaços de roupas. Nada é inteiro. Tudo são fragmentos.

A cena dramática do choro e da comoção também passaram longe porque o momento exigia concentração. Todos precisavam olhar para aquele quebra-cabeça de ossos e trapos e tentar encontrar alguma lógica. E aí surgiam frases surreais tipo “esse crânio não deve ser da minha mãe porque ele não tinha todos os dentes” ou  “esse fêmur pode ser do meu pai já que ele era bem alto”. Ou ainda perguntas como “isso aqui pode ser uma gravata?”. A realidade, às vezes, é muito mais prática do que romântica. Fundamental para dar mais leveza aquele trabalho tão ingrato.

E no meio disso tudo, vez em quando, eu me afastava um pouco para atender o telefone e ouvir os amigos e parentes desejarem “parabéns, felicidades e muitos anos de vida”. O que só deixava tudo menos fúnebre, com um clima meio surreal. Quase otimista.

Vida x Morte

Diferentemente do que pensei, minha amiga não se esguelou de chorar e eu também não fiquei deprimida. Pelo contrário. Todo aquele contato com a morte me trouxe muitas reflexões sobre a vida.

Todo mundo sabe que quando morremos viramos pó. Mas ver isso tão de perto é impactante. Meu Deus, é isso mesmo que viramos? Nada? Nosso corpo não passa de uma carcaça animal.  Nossa essência está na alma. E só podemos cultivá-la em vida.

O momento mais tocante da escavação foi quando minha amiga encontrou um sapato milagrosamente inteiro, que pertencia ao pai, e era exatamente o mesmo modelo de sapato que ela estava usando. Senti que aquilo mexeu com ela, mas não com tristeza, e sim com uma certa saudade. Era um detalhe poético de semelhanças que a genética não explica. Uma conexão viva entre pai e filha. E é isso que nos emociona: a vida. Não a morte. São as lembranças do amor que deixamos pra quem fica. Os restos mortais não dizem nada. E nem assustam.

Ainda no cemitério, ao ver uma sala de velório abarrotada de gente chorosa, pensei em como a vida às vezes é generosa e nos dá tempo suficiente de realizarmos muito e cativar muita gente. E em outras vezes, é cruel e não dá tempo nem de fazer amigos – foi o caso de um bebêzinho, que passou ao nosso lado num caixão pouco maior do que uma caixa de sapato, acompanhado por meia dúzia de parentes. É impossível não pensar em como será no dia em que eu morrer. E no que eu terei feito quando esse dia chegar.

Depois que os ossos foram recolhidos e guardados em uma caixa, fomos para um outro cemitério, na Serra da Cantareira, para guardá-los em um outro túmulo da família. Ufa, tarefa cumprida. E em meio aquele sol escaldante e um jardim de lápides, uma inesperada vontade me surgiu com força:

– Saindo daqui vou pra praia tomar um banho de mar! – eu disse

– Posso ir com você? – minha amiga respondeu com os olhos cheios de empolgação.

E assim fomos. Cruzamos a cidade até chegar no praia. Suadas e cansadas, mergulhamos felizes, com sede de vida. Não só lavei minha alma, mas também agradeci pelo meu corpo. Tão inteiro, tão vivo. Um inesquecível presente de aniversário.

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O gêmeo solitário

Cheguei à casa do pai de santo cheia de curiosidade e um tanto ansiosa. Era a primeira vez que iria consultar os búzios e queria muito saber quem eram meus orixás protetores e ter previsões para o ano de 2010, que se iniciava.

Ele me explicou que, como não me conhecia, começaria perguntando ao oráculo sobre fatos marcantes do meu passado, para entender melhor o meu presente e, só depois, falar de algumas possibilidades de futuro. Não estava nos planos aquele momento retrospectiva, mas concordei.

De olhos fechados, ele sacudiu as conchas nas mãos, fez suas orações e as jogou sobre um cesto de palha rodeado de guias e pedras. Ao ver o resultado, fez cara de assustado, arregalou os olhos e me perguntou:

M3361S-3034– Você já fez algum aborto?

– Aborto, eu? Não – respondi assustada.

– Tem certeza?

– Claro que tenho.

Ele jogou os búzios novamente. Mais um vez arregalou os olhos e insistiu:

– Pode ter sido um aborto espontâneo…

– Não, nunca.

– Às vezes acontece e a mulher nem percebe…

– Olha, tenho certeza absoluta de que nunca engravidei  – retruquei impaciente.

E aos dois minutos de consulta, eu já me arrependia de estar ali. Comecei a achar que ele era charlatão e estava bem irritada com o tom pessoal e íntimo das perguntas. Além disso, na época, eu era a freak do anti-concepcional: tomava pílula e usava camisinha em absolutamente TODAS as relações, mesmo namorando. Só não coloquei DIU como proteção adicional porque o médico me convenceu de que não havia necessidade.

Ele respirou fundo, jogou os búzios pela terceira vez, fez a mesma cara e mudou a pergunta. Mas não o tema:

– E a sua mãe? Ela teve algum aborto espontâneo antes de engravidar de você?

– Não. O que sei é que minha mãe engravidou inclusive bem antes do planejado, quando minha irmã tinha apenas seis meses. Não houve tentativas anteriores.

Aí quem se irritou foi o pai de santo:

– Olha, minha filha, não é possível! Os búzios estão dizendo que existe um aborto na sua vida! Que você presenciou uma morte dentro do útero. E isso é muito marcante na vida de uma pessoa. Me conte melhor como foi essa gravidez….

Foi então que lembrei de uma história que um dia minha mãe contou por acaso, sem dar muita importância. Ela disse que quando engravidou, o médico informou ao ver o primeiro ultrassom que ela teria gêmeos. A gestação dupla, porém, durou pouco… depois de alguns meses, ela teve um sangramento forte, foi ao médico, fez um novo ultrassom e soube que, infelizmente, tinha perdido um dos bebês. Mas o outro seguia ali firme e forte (eu, no caso).

Quando falei isso, o homem ficou branco. Falou que era este o fato que os búzios tanto apontavam. E durante mais de um hora, ele me explicou sobre a importância de tudo o que vivemos dentro do útero, as consequências daquela experiência na minha vida e sobre como eu deveria ser grata pela minha existência.

Saí da consulta bastante abalada. Nunca (mas nunca mesmo) poderia imaginar que aquela história tinha alguma relevância na minha vida. Muito menos que seria a causa de questões dolorosas e profundas da minha personalidade. Desde então, foram muitas pesquisas, experiências e processos terapêuticos que me ajudaram (e ainda me ajudam) a entender melhor o que essa perda de fato significou pra mim.

Na internet, descobri que em alguns países existem grupos de apoio a pessoas que perderam irmãos gêmeos. Li diversos relatos que descrevem dores parecidas e bem familiares pra mim: sentimento de não merecimento, uma solidão profunda e, principalmente, a sensação de que algo muito importante está faltando. Muitos depoimentos eram de pessoas que, assim como eu, nem sequer conheceram o irmão gêmeo, que ficou no caminho da gestação ou do nascimento.

Em uma leitura de aura sobre a minha gestação, descobri que o trauma daARVORE COM RAIZES LINDA separação ainda estava muito forte no meu inconsciente. E que a conexão de alma gêmea, que eu romanticamente tanto buscava em meus companheiros, era na verdade uma busca pela união que tinha vivido um dia no útero. E que era preciso curar a ferida pra conseguir ter um relacionamento real e não idealizado.

Com a constelação familiar, tive a incrível oportunidade de olhar pra esse irmão, que passou quase despercebido pra minha família, mas que ainda estava tão intimamente ligado a mim. Pude olhar pra ele, reconhecê-lo, agradecê-lo e dar-lhe um lugar de muita honra. Senti um alívio tão grande que é difícil descrever com palavras. Foi como se tirasse uma mochila cheia de chumbo das minhas costas, que eu nem sabia que carregava.

Nas sessões de respiração de renascimento, “voltei” para o útero e senti no corpo físico a dor da separação e da perda. Foi como se tivesse voltado no tempo e terminado de sentir uma dor que, de tão grande, precisou ser digerida em etapas. E ainda está sendo.

E cada vez que investigo um pouco mais, me descubro um pouco mais. Me entendo. Novas peças se encaixam, mudanças acontecem.

Descobri que, apesar de traumática, a experiência me trouxe uma enorme capacidade de entender a dor do outro, uma facilidade enorme de sentir compaixão. É como um presente que foi deixado pelo meu irmão. E que eu nunca teria descoberto se não tivesse ido atrás dessa história. Se não tivesse tentado entender minhas próprias dores.

E junto com esse presente, veio a percepção de que nossas feridas são como valiosas chaves, que nos abrem portas secretas para a transformação. E ter coragem de abri-las é o caminho para curar a alma. É se apropriar da própria história.

Finalmente entendi, como o pai de santo já tinha me avisado, que nem adianta querer saber do futuro sem antes entender o passado. Sem saber direito quem se é. Auto-conhecimento é, na verdade, um grande investimento. E um futuro mais bonito é apenas consequência.

 

 

 

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