Author / Debora Pivotto

Autoconhecimento destaque

Fé em Santo Antônio e no autoconhecimento

13 de junho é Dia de Santo Antônio. E eu sempre fico pensando como as pessoas têm coragem de colocar um santo fofo daquele de ponta cabeça ou na geladeira no intuito de conseguir um amor. Sei que é só uma imagem, mas eu não conseguiria não. Tadinho… logo ele, tão acolhedor, segurando o menino Jesus no colo.

Além do que, acho meio “anti-ético” começar uma relação de parceria com um santo dessa forma. Dizer “fica aí até me arrumar um namorado(a)” está mais pra uma ameaça e chantagem do que para um pedido. É amor ou um escravo(a) que você quer? Pensa bem.

Não sou contra rezar pra ajudar na busca dos nossos objetivos. Muito pelo contrário, acredito piamente no poder da oração. Mas acho que as pessoas às vezes não querem ajuda, elas querem um milagre. E quando eu falo milagre, eu quero dizer receber magica e passivamente, sem ter que fazer nada por isso, entende?

Veja bem. Se a pessoa conscientemente quer muito estar num relacionamento e não encontra ou não se firma com ninguém, alguma coisa dentro dela está em desacordo. Tem um lado dela que quer e um outro que, com certeza, não está tão a fim assim! Ainda mais quando o assunto é relacionamento afetivo, que pode nos trazer muitos momentos bons, mas que também nos deixam super vulneráveis. Nos obriga a olhar pra questões que nem sempre estamos dispostos.

Consciente x inconsciente

Já somos maduros suficientes – ou deveríamos ser – pra compreender que apenas uns 10% das nossas ações são conscientes. Os outros 90% são comandadas por nosso inconsciente. E isso não sou eu que to inventando, é pura psicologia. Ou seja, se existe uma incoerência muito grande entre o que quero conscientemente e o que tá rolando de verdade na minha vida, tem alguma treta rolando ai dentro de você. Há material de estudo pra ser investigado!

O autoconhecimento, pra mim, é um trabalho que só começa quando existe um mínimo de humildade. Você procura por ele depois que duvida de si mesmo e entende que talvez não se conheça tão bem quanto achava. Antes disso, a gente fica puto com a vida, com o mundo e faz coisas tipo colocar Santo Antonio na geladeira.

Outra coisa que acho muito triste. Gente que fala “fulana tem DEDO PODRE, só arruma boy lixo” ou “fulano NÃO DÁ SORTE com mulher”. Não é o dedo que tá pobre, minha gente, é você que não está fazendo terapia ou não está buscando se conhecer! Simples assim. Também não acredito em falta de sorte. Garanto que se esse pessoal “azarado” compreender as mágoas que guarda do pai e da mãe e as dores que ficou da infância vão começar a encontrar pessoas melhores no caminho. Isso sim é um verdadeiro milagre. Mas tem que contar com a sua ajuda, entende? Não dá pra exigir que o santo faça tudo sozinho.

Me lembro bem quando, há uns anos atrás, durante um retiro de Leitura de Aura, cujo tema era relacionamento, nós meditamos para visualizar uma imagem que traduzisse como nós estávamos agindo (inconscientemente) nas nossas relações. E a imagem que veio pra mim me deixou muito perturbada. A cena era eu num lugar que parecia um campo de batalha da Idade Média. E eu era uma brava guerreira que levantava o escudo e a espada sempre que alguém se aproximava. Eu bufava de raiva e estava doida para cortar cabeças. Basicamente, a mensagem era que eu não me relacionava, mas sim, guerriava com as pessoas. Eu estava sempre super armada e me protegendo previamente de possíveis ataques de qualquer um que se aproximasse.

Fiquei muito mexida com a imagem e com essa constatação. Eu me achava tão fofa, simpática, acolhedora. Mas de fato, não entendia porque não só os homens, mas todas as pessoas parecia ficar meio distantes de mim. Sentia sempre que tinha contatos meio superficiais. E depois de ver isso, fui ligando os pontos e vendo como eu sempre me sentia “atacada” por algumas atitudes de pessoas próximas ou por comentários das pessoas que eu sempre encarava como críticas e me ofendia. Revidava ou me afastava. Era muito cansativo. Estar em guerra nos deixa sem energia.

Aos poucos fui entendendo melhor as razões disso e hoje sinto que estou muito melhor. Mas ainda é um super trabalho me manter relaxada e desarmada nos meus relacionamentos. Todos eles – com o marido principalmente, mas também com as amigas e até com minha família. Ainda ouço a voz dessa “guerreira” que me diz com frequência que “ele tá falando isso pra te atacar”. Ou “sua mãe tá te dando uma indireta, revide”. É complexo.

Fé + autoconhecimento = porta aberta para o “milagre”

Enfim, para finalizar, quando o assunto é relacionamento, o que recomendo é: reze, mas também, procure se conhecer. Busque terapias, com psicólogos, holísticas, em grupo, o que sentir que precisa. E se for rezar pra Santo Antônio, não faça chantagem. Seja coerente, proponha uma parceria.

Sugiro algo do tipo “Querido Santo Antônio”….

– Me ajude a comprender por que estou tão fechada para relacionamentos? Do que eu tenho medo? O que se enconde dentro de mim que não estou conseguindo ver? Me mostre.

– Me ajude a abrir meu coração! Me ajude a encontrar caminhos para a cura e para elaborar sentimentos que ainda não digeri.

– Me ajude a conhecer melhor a minha sexualidade e meus desejos. Por que só me interesso por quem não está a fim de mim?

E por aí vai…. seja honesto com você mesmo e peça de coração. E ajude esse santo tão querido a te ajudar.

Leitura de Aura

O papel do professor

No teatro da escola, a professora de música se prepara para o início da aula sentada ao piano. Atrás dela, o coral de crianças aguarda ansiosamente. Um dos alunos cutuca empolgado a professora pelo ombro, quer cantar pra ela um princípio de música que lhe veio à cabeça. Mas ela não consegue dar atenção, está aflita tentando ler e entender o que está escrito na complexa partitura sugerida pela escola. O garoto insiste. E ela, irritada, desiste da pauta e olha pra ele, que canta:

– Do! Ré!

E a professora reproduz no piano as notas sugeridas

– Do! Ré!

Ao ouvir no instrumento o som que estava em sua cabeça, ele fica fascinado… e continua:

– Miiii.

A colega do lado, emenda:

– Fá!

E assim começa a aula de piano. E a professora entende que seu papel é muito mais simples do que exigem as escolas.

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Rumo a morada sagrada

A mulher observa com atenção e deslumbramento a escadaria que leva a um pequeno e luminoso templo, local da morada sagrada, a casa de Deus. No caminho até lá, uma escadaria imensa… até parece infinita. E ela segue subindo, degrau por degrau. A caminhada, porém, está pesada. Ela olha pra baixo e vê seus pés totalmente enroscados em uma rede de pesca, que traz no entrelaçado dos fios um espelho, um quadro com um auto-retrato e quatro mulheres da família. Sua vaidade, a imagem que idealizou de si mesma e um peso que traz de sua ancestralidade.

Mas subir com tudo isso é difícil. A escadaria já é suficientemente longa e trabalhosa. Vale a pena fazer uma pausa, ver os emaranhados que anda arrastando e desapegar.

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Hora do recreio

Na sala de aula, na frente de uma grande fileira de carteiras, a professora escreve na lousa e explica alguns conceitos aos alunos. Sentada na cadeira de madeira, a menina escuta atentamente e faz anotações. Mas a aula é massante, chata. A classe toda parece  desinteressada.

Buscando algum conforto, ela olha pelo vidro da janela e observa os alunos que já estão brincando no pátio. A tão sonhada hora do recreio estava por vir! Ela olha pro relógio na parede, olha pra professora. Até que finalmente, bate o sinal e as crianças saem correndo em fuga…Do lado de fora, na grama, é a maior festa! Elas pulam corda, correm, jogam futebol, giram em roda. Como é bom poder brincar e fazer o que quiser.

Mas minutos depois, a professora chama os alunos de volta para sala, batendo palmas. A menina respira fundo, entra e volta a sentar na mesma carteira. A aluna continua e ela segura o queixo com as mãos pra tentar prestar mais atenção e não pegar no sono.

Foi assim durante toda a vida escolar.

Hoje, mulher adulta, ela chega cedo no escritório para trabalhar todos os dias. Sentada na cadeira, de frente para o computador, ela digita rápido e realiza suas tarefas com eficiência. Está cansada, mas o sentimento de obrigação e normalidade a fazem continuar. Depois de horas de trabalho, entediada, ela resolve dar um tempo e busca no computador opções de lazer para o fim de semana e destinos de viagens para as férias. Continua sempre a espera da hora do recreio.

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Meu lugar no mundo

A mulher chega no cinema apressada e aflita. A sala está cheia e ela tem medo de não encontrar um lugar pra sentar. Vai direto para a fileira do mercado de trabalho, mas todas as poltronas estão ocupadas. E ainda tem gente de pé, só esperando vagar um lugar pra conseguir sentar. Ela então se desespera. Revolta-se. Pagou caro e se esforçou muito para chegar até ali. Como pode ficar sem lugar agora? Ao ver a confusão, o lanterninha sabido se aproxima pra tentar ajudar. Ele ouve com amor e paciência os reclames da mulher aflita e diz:

– Não se preocupe. Tem lugar para todos aqui. Você só precisa ver o que está escrito no seu ingresso. Lá tem as indicações de onde é o seu lugar.

A mulher vasculha a bolsa cheia de coisas até achar o ingresso, mas quando tenta ler o que está escrito, não consegue. Está nervosa e enxerga tudo embaçado. A ansiedade e o medo deixam sua visão completamente turva.

E enquanto todos se aglomeram e lutam para conquistar um lugar nas poltronas genéricas, do outro lado da sala, numa ala mais reservada, dezenas de lugares estão vazios. É a fileira do propósito de vida, onde as poltronas são grandes, confortáveis, personalizadas. E estão desocupadas. E de lá é possível ver  uma cadeira especial, de veludo vermelho, que tem até o nome e sobrenome da mulher gravado na lateral. É exclusiva e feita sob medida, parece um trono.

– Como faço pra chegar até ali? – pergunta a mulher, ainda ansiosa, para o funcionário do cinema.

– Dedique-se a descobrir os talentos que trouxe impressos na alma quando ingressou nesse mundo. E  encontre o lugar que só você pode ocupar – disse o lanterninha.

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Entre quatro paredes

A menina acompanha atenta a sua aula semanal de pintura. Na tela em branco, apoiada num cavalete de madeira, ela cria com pinceladas suaves cenas de natureza morta em tons claros de rosa, azul e amarelo. Uma pintura bonita, leve, correta. Ela mostra com orgulho o desenho feito com boa técnica para os colegas do curso e se despede.

De volta em casa, no quarto, de frente pra cama de casal vazia, a mulher tenta digerir a raiva depois de uma discussão conjugal. Mas não consegue. Dói muito. O sangue ferve e ela atira na parede com uma força visceral latas de tinta vermelha, branca e preta, que escorrem formando uma obra-prima viva. Fresca. Ela senta num tapete no chão, abraça os joelhos e se encolhe na sua dor. A porta do quarto está trancada. Do lado de fora, uma fila imensa de mulheres aguarda ansiosamente pela abertura da exposição.

Photo Olga DeLawrence/unsplash
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Prisão da escassez

A mulher se prepara para sair da prisão depois de décadas. Sai da cela onde dormia e é levada por uma funcionária pelo corredor. Na recepção, lhe devolvem algumas roupas, pertences e um saco plástico cheio de dinheiro.

Ela deixa o presídio mas fica parada por um tempo na frente do portão. De chinelos e calça de moletom, segurando o saco de dinheiro bem firme nas mãos. Faz um dia lindo, ensolarado, mas a mulher está assustada. Foram muitos anos presa, praticamente a vida inteira. Não sabe o que fazer com tanta liberdade. E nem com tanto dinheiro.

Ela anda um pouco pela rua, fica com medo e decide voltar. Bate na porta do presídio pedindo ajuda. Quer entrar, mas já não é mais possível. A mulher, então, volta a andar pela calçada com a roupa que mais parece um uniforme de cadeia e com o saco de dinheiro fechado nas mãos. Nem sabe ao certo a quantia que carrega. Não tem familiaridade nem com o dinheiro nem com a liberdade.

Já em casa, sozinha, antes mesmo de abrir o saco, ela começa a pensar que diabos vai fazer com o dinheiro. A primeira ideia é ir ao banco, conversar com o gerente e pedir sugestões de investimentos. Outra hora se vê visitando um imóvel pra sair do aluguel. Depois cogita comprar um carro. Sentada no chão do quarto, ela abraça os joelhos encolhida e segura o saco de dinheiro. Sempre fechado. Distante do corpo. As possibilidades são muitas, mas a sensação de angústia é a mesma: “Meu Deus, o que devo fazer com esse dinheiro?”.

E então, ela ouviu uma resposta: “Antes de pensar o que fazer com o dinheiro, experimente criar uma intimidade com ele. Abra o saco, pegue as notas, esfregue-as em suas mãos. Sinta a textura. Coloque-as em cima da cama, faça uma colcha e pule com vontade de costas em cima do dinheiro. Depois, permita-se dar risada. Rir muito mesmo. Jogue o dinheiro pro alto. Festeje a vida. A abundância. Sinta a vibração de celebração do dinheiro. Depois decide o que fazer”.

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Canto da sereia

Na loja de presentes, a menina se encanta com quase tudo o que vê. Os enfeites, brinquedos, joias. De mãos dadas com o pai, ela o puxa forte pelo braço e aponta para um quadro lindo que está na vitrine. Ele vira o rosto bem rápido e diz displicente “sim, filha, é lindo”. Fingiu que viu, mas não viu. Seus olhos e seu interesse estão todos voltados para a vendedora da loja, com quem conversa animado, investindo num possível encontro. A menina se irrita. Encontra outro presente, chama o pai novamente, bate o pé no chão. Faz de tudo pra chamar a atenção, mas o esforço é inútil. Ele só tem olhos para a moça que está do outro lado do balcão.

Anos se passaram. A menina cresceu e virou mulher. Linda, formosa, sedutora. Na loja de presentes, hoje é ela que está na vitrine. Com uma calda de peixe, sutiã de conchas, colar de pérola. Virou sereia. Cuidadosamente, arruma os longos cabelos por cima dos seios fartos com orgulho. Acha que o seu corpo é o que tem de mais valioso para oferecer aos homens que passam

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Livro da vida

A mulher está afoita na biblioteca. Os olhos nervosos correm pelas prateleiras, passando rápido por fileiras e mais fileiras de livros. E vai lendo bem rápido: título, assunto, autor. Há tempos que busca algo que não sabe bem o que é. Uma leitura profunda, que faça sentido. Um conhecimento que preencha a sua alma.
No canto da última prateleira, um livro bem velho, meio mofado, chama sua atenção. Mas ela finge que não vê. Segue passando os olhos compulsiva e rapidamente pela estante e volta a topar com aquele livro que parece estar ali esquecido há décadas. O couro da capa já foi carcomido por brocas. Dentro dele, páginas e mais páginas amareladas com a história da sua vida e da sua família. Registros não só da sua biografia, mas de todos que vieram antes dela: avôs, bisavós, mães, tios, pais. Ela então o pega e folheia com um misto de espanto, curiosidade e desprezo. Ainda não sabe, mas esse é o livro que tanto procura.

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“Quando me descobri racista”

Conheci a Bianca em 2003 no primeiro dia de aula da faculdade. E em pouco tempo ficamos muito amigas. Era a única colega negra da sala. Talvez a única de todo o curso de jornalismo. Falávamos muito sobre Direitos Humanos, Política, História… e muitas bobagens também. Me lembro do dia em que ouvi ela falar que estava estudando algo sobre a escravidão e os impactos sofridos pelos negros nas aulas de Ciências Sociais, na USP. Ela achava um absurdo toda a herança de opressão deixada para os negros, grupo do qual visivelmente ela não se sentia parte.

Por diversas vezes me veio na garganta a pergunta: “escuta, como é pra você, como negra, estudar tudo isso? ”. Mas eu nunca consegui perguntar. Não sabia como ela lidava com a questão e tinha até medo que ela se ofendesse com a pergunta (!!).

Acelere o tempo para 2017.

Bianca me escreve para contar que estava num festival literário em Araxá (MG). Ela hoje é escritora, negra e ativista. Autora do livro “Quando me descobri negra”, que relata em crônicas um lindo, profundo e doloroso processo sobre como ela se descobriu e se apropriou de sua origem negra. Deixou de ser morena.

Desde então, sempre falamos muito sobre esse processo de se conectar com suas origens, de resgatar a dor e a força que toda essa história envolve e, principalmente, sobre ter a coragem de escrever sobre isso e inspirar tantas mulheres a fazer o seu caminho de empoderamento. É um processo complexo, cheio de camadas e de contradições. Mas muito potente também.

Sempre tive muito orgulho de ver não só a Bianca, mas tantas mulheres que, nos últimos anos, se assumiram negras. Soltaram seus cabelos e suas vozes. É realmente lindo de ver. Mas, de uns tempos pra cá, tenho olhado mais pra mim e entrado em contato com o meu próprio processo diante de toda essa transformação. E tenho lidado com algo bem complexo e profundo que é a deixar de ser racista.

Temos que ir além do discurso.  Photo by Henry Be on Unsplash

Discurso x prática

Comecei a perceber que conscientemente eu, claro, apoio todo esse movimento. Numa camada mais superficial, no raciocínio e no meu discurso, sou super a favor da valorização do negro. Mas por dentro tenho percebido muitas contradições. Começou de forma leve quando percebi que eu ia em vários debates com mulheres negras, discutia representatividade, mas quando entrava num restaurante e via mulheres negras no salão, eu continuava com a velha certeza de que elas eram faxineiras, garçonetes ou qualquer outro cargo que exige um menor grau de escolaridade. É uma conclusão assim que chega sem que dê tempo de pensar. É rápida, espontânea, sorrateira. No início, me iludi pensando “ah, mas é a cena que estou mais acostumada a ver, então, é natural que eu tire essa conclusão”. Mas não é só isso. É uma sensação que é difícil de perceber – e mais ainda de assumir – mas é uma certeza de quem no fundo, mas lá no fundo meeesmo, espera e quer que essas mulheres estejam ali daquela forma, entende? Num lugar que não é o mesmo onde eu, mulher-branca-cliente-privilegiada, estou.

Fiquei meio chocada em perceber isso. É difícil. A vergonha é enorme. A gente sempre quer ser mais legal do que se é. Mas como estou me enfiando num processo de auto-conhecimento profundo e compreendendo várias partes minhas bem pouco admiráveis, resolvi ter coragem e ir mais longe na minha auto-observação em relação ao racismo também.

A segunda grande contradição veio com aquela polêmica do uso do turbante, quando uma menina com câncer disse ter sido reprimida por mulheres negras por estar usando algo que é da cultura africana. Meu incômodo nem foi a questão de a menina poder ou não usá-lo – aliás isso só era importante pra quem não se aprofundou no debate. A minha dificuldade foi em aceitar que o turbante era de origem negra. Meu primeiro pensamento – aquele espontâneo, rápido, sorrateiro – me falou “uai, mas as mulheres egípcias já usavam turbantes…”.

Como já estava atenta a esse lado mulher-branca-racista que me habita, refleti e pesquisei o assunto. E quando cheguei num texto incrível da escritora Ana Maria Gonçalves, tomei tantos tapas na cara que fiquei até tonta. Ela fala entre outas coisas sobre essa característica do racismo de não acreditar que os negros possam ter criado coisas legais e incríveis. Aceitamos que o macarrão é italiano (mesmo que tenho sido inventado pelos chineses), que o judô é japonês, mas a capoeira é brasileira (tipo minha, sua, nossa, de todos…), o acarajé é da Bahia, do Brasil, o samba é nosso. O que os negros trouxeram nunca é do negro. E se eles disserem que foram eles que inventaram, a gente ainda questiona. A verdade é que nós, brancos, duvidamos deles o tempo inteiro!  Achamos que eles estão equivocados até quando falam da própria história. É muito arrogância. Resistimos muito em dar a eles glórias e créditos. Já frases como “só podia ser preto” ou “isso é coisa de preto” saem facilmente da boca (ou fica no pensamento) de muita gente quando vê alguém fazendo uma besteira.

No mesmo texto, ela cita um poema de Nei Lopes que diz o seguinte:

“Primeiro,

Eles usurparam a matemática

A medicina, a arquitetura

A filosofia, a religiosidade, a arte

Dizendo tê-los criado

À sua imagem e semelhança.

Depois,

Eles separaram faraós e pirâmides

Do contexto africano

Pois africanos não seriam capazes

De tanta inventiva e tanto avanço”

Nessa hora, eu vi como o racismo é esperto. Consegue deturpar até mesmo limites geográficos, tão claramente definidos nos mapas. Quando reclamei que o turbante vinha do Egito, onde eu enfiei esse país? Na Europa? Na Ásia? Porque no nosso imaginário (racista) a África é só o continente de crianças famintas da Somália e guerras civis. No máximo, a terra do povo que sempre ganha a São Silvestre – e de quem nem sabemos os nomes, aliás. Hollywood inventou que a Cleopatra era loira de olhos azuis como a Liz Taylor e nós acreditamos.

Quando vi o discurso da Taís Araújo dizendo que a cor do filho dela faz com que as pessoas mudem de calçada também ressoou forte em mim. Quando estou andando na rua sozinha e vejo homens se aproximando, eu às vezes fico com medo e tenho vontade de mudar de calçada. E se eu falar que não faz diferença se os homens são negros ou brancos, vou estar mentindo. Porque faz. Os homens negros geralmente me assustam mais. Tenho em minha memória um trauma real de um sequestro relâmpago que sofri e que foi praticado por dois jovens negros. Mas sei que junto com essa experiência concreta vem todo um esteriótipo do jovem-negro-bandido que é notícia todo dia na TV e que tá lá grudado no nosso inconsciente. Tenho noção do quanto é opressor e injusto para os jovens negros trabalhadores, e pras mães negras, quando olho para eles com medo ou quando disfarço e mudo de calçada. E tenho pensado muito em como lidar melhor com isso.

Enfim, esses são só alguns exemplos das contradições que percebo em mim. E falo isso não como quem está conformada e acha que a vida é assim mesmo. Pelo contrário, assumo esses pensamentos e sentimentos racistas porque acredito que só assim vou avançar e conseguir ser uma pessoa melhor. Porque acredito que essa causa é de todos. Mas não é um processo fácil. Requer muita coragem.

Racismo tem a ver com arrogância, que é um subproduto do orgulho. E reconhecer a própria maldade é a coisa que o ser humano mais resiste em fazer na vida.

A tendência é sempre achar que ou que ela não existe (é mimimi) ou que ela está no outro. Seja o outro a socialite criminosa que chama criança negra de macaca ou a amiga desavisada que faz perguntas tipo “cadê o dia da consciência branca?”. É importante perceber que o fato de me reconhecer como privilegiada e apoiar as cotas e a luta dos negros não me isenta de ser racista. Do mesmo jeito que os homens (e nós mulheres) feministas não estão livres do machismo. São muitas camadas para serem despidas. Mas sei que o primeiro passo para me livrar dessa sombra é assumir que ela existe, compreendê-la pra conseguir transformá-la.

E outra. Já passou da hora de nós, brancos, assumirmos o racismo que existe dentro de cada um de nós. Pra que essa luta não seja unilateral e nem fique só no nível do discurso. Sinto que é o melhor que podemos fazer pelos negros nesse momento. E já sinto grandes mudanças dentro de mim.

 

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